1.11.11

Pelo estado mais pequeno da Índia, junto do mar, outrora de um país pequeno, junto do mar (escrito por uma pessoa pequena que gosta do mar)


Depois de uma sexta-feira marcada pela remodelação dos móveis do quarto, nós quatro raparigas a empurrar roupeiros e camas e a levantar secretárias até atingir o ponto ideal. Uma sessão de cabeleireiro no pátio de casa, mas de costas para o espelho, para caso estivesse a correr mal eu não ficar traumatizada de imediato e ter calma até ao resultado final:
Quero cortar o cabelo.
Eu posso cortar-te o cabelo!
Consegues?
Eu cortei o cabelo à minha irmã mais nova uma vez.
Está bem, vais-me cortar o cabelo, roomie.
Mas depois ela ficou a odiar-me durante um ano, até ao cabelo crescer novamente.
Humm… que se lixe, se quiseres podes cortar-me o cabelo na mesma, se tu confiares em ti eu confio em ti, pode ser?
Uma cara de pele branquinha, pele de quem cora com facilidade, a ficar mais encarnada com uma mistura de medo por também não confiar em si e ao mesmo tempo entusiasmo pela responsabilidade que lhe foi atribuída. E uma tesoura que era boa para cortar papel mas com cabelos encravava um bocado. Mas assim foi, recebido com espanto e como foi referido durante o processo, o cabelo são células mortas por isso por muito mau que fique não morre ninguém.

Isto seguido de cozinhados à pressa para partir em direcção ao mount wilkinson onde a escuridão de uma noite onde a lua só chegou muito tarde fez com que a caminhada tivesse uma série de peripécias ilumidas apenas por lanternas que quem tinha ia gritando para avisar os da parte de trás da fila. Rochas, não tropecem. Vacas selvagens, os indianos chegam-se à frente por estarem mais habituados a lidar com isso. Água, ou lama, ou talvez tenha sido algo que as vacas por aqui deixarem, cuidado. Está toda a gente? Vamos exclamando os números que nos foram atribuídos para nos certificarmos que estamos ali todos os treze. Alguma criatura no meio das ervas que quase são do nosso tamanho (meu, pelo menos) que faz um barulho estranho e com quem apesar de não a vermos iniciamos uma breve conversação: olá… Nós viemos em paz… podemos passar? A medo, após aguardar um pouco, lá fomos. E uivamos por grande parte do caminho, fazendo concorrência aos cantos que ecoam sempre das vilas que jazem nos vales em redor da montanha que percorremos, junto daquela onde vivemos. Uma fogueira um pouco (bastante) falhada, era suposto termos recolhido lenha pelo caminho mas não vendo esse percurso sequer também seria complicado de ver qualquer coisa mais. Uma guitarra e uma pandeireta e vozes, música. Histórias de terror que só dão para rir (a Tanvi é assim mesmo). Chá e biscoitos que ficaram mal cozidos e outros petiscos dos quais tínhamos enchido as mochilas. Um bolo de chocolate à meia noite, mais propriamente chocolate envolvido em bolo, presente cozinhado pelo Japão e pela Alemanha/Noruega. Uma noite de estrelas que choviam e um nascer do sol acompanhado de passos rápidos para chegar cedo e entrar naquele primeiro autocarro para Pune. Perdida com uma finlandesa procurando o Hard Rock  Café onde os empregados de mesa fizeram o favor de presentear chantilly com uma cereja no topo (agora tens de comer sem usar as mãos, lindo serviço, cara toda branca). Por isto perdeu-se o primeiro autocarro de volta e o segundo é demasiado tarde, confusão de transportes para voltarmos a horas decentes. Uma quantidade luminosa de pessoas a cantar os parabéns ao jantar, ouvi-os em português (europeu e do Brasil), espanhol, hebreu, hindi, inglês, alemão, japonês, chinês e nem sei que mais. Não tenho nada para ti mas posso te dar um bocadinho de chá (o bom que isso é para quem percebe dessas metáforas). Chouriço e também boxers rasgados pela tradição dos wedgies que foram sofridos em meu nome pelo único outro português no campus, não é algo que seja divertido. Distinto de todos os outros, longe de tantos que queria ter tido por perto, mas ao mesmo tempo tão, tão bom, sem dúvida alguma.

Um domingo com um jantar organizado pelo linking group, código de vestuário – trajes nacionais, ou o mais perto disso que tenham. Brincos do galo de Barcelos, espectáculo. Ementa especial também, com direito a panquecas coreanas que são uma sobremesa fantástica.

Uma segunda cheia de trabalho que tinha sido adiado nesse fim-de-semana e com um jantar e festa de Dewali. A festa da luz, em toda a índia explodem quantidades inimagináveis de fogo de artificio, dizem que mais que no ano novo no resto do mundo. Pequenas férias, finalmente, graças a essa tão importante festividade hindu. O destino não é um onde serão vistas as marcas dessa significância toda, mas é certamente um magnífico destino. Terça-feira, depois de uma manhã com aulas, vamos para Pune apanhar o autocarro onde se passaram cerca de 11 horas, até chegarmos a Goa. Passaram um filme da indústria cinematográfica indiana, bollywood, um homem exageradamente musculado vestido em cabedal e com uns óculos escuros e uma mulher a dançar com pouca roupa, uma quantidade gigante de pessoas a dançar e a cantar num playback claramente (mal) montado. Tenho uma nova mãe, Wanyi, segundo ano chinesa que diz que eu sou tão fofinha que quando ela tiver uma filha quer que ela seja como eu, entreti-me por algum tempo na viagem a conversar com ela, que estava atrás de mim. 
Eu estou a comer porque estou aborrecida, não tenho fome, depois fico sem comida então vou dormir ou então fico acordada toda maldisposta porque comi demais, seja qual for o resultado, tenho alguma coisa com que me entreter, sejam alimentos, o sono, ou uma barriga rabugenta.
Vocês são mesmo pessoas interessantes.
A forma como tu disseste isso… Parece que nos estás a estudar ou assim, estes chineses sempre a analisar tudo. E depois a conquistar o mundo. E depois o meu irmão a ter que estudar chinês.
Irmão? Quantos anos? Tens fotos dele?
Passando à frente…

Chegados de madrugada, fomos para a praia de Anjuna onde já tínhamos reservado um quarto. Divididos em vários pequenos grupos, fui com a Maarit (Finlândia) e com o Youngho (Coreia) e com eles passei a maior parte do tempo mas também nos encontramos com outros alunos que ficaram na mesma área.  Nesse dia exploramos o interminável Flea Market de Anjuna e à noite fomos para Baga conduzidos por um taxista que, ao saber a minha nacionalidade, falou do quão boa era a vida daquele estado quando os portugueses ai estavam e que de facto se ainda lá estivessem ele podia-nos ter feito o desconto maior que estávamos a pedir mas assim só podia fazer um desconto mais pequenito porque as coisas tinham piorado desde que nos fomos embora. Ainda continuou lá a explicar que havia um negócio qualquer e que era fácil para os goeses candidatarem-se a um passaporte português e que ele se tinha candidatado e queria ir para Portugal. Não sei se isso vale de muito, Portugal também não anda assim muito bem. Lá deixei o rapaz triste com a notícia de que o seu possível passaporte português não é ferramenta de grande coisa. Já em Baga, há que fazer referência a uma parte anterior de “ter amigos entre os nativos é útil”. Um grupo bastante grande de alunos MUWCI em Goa e – O quê? O teu pai é dono deste clube?! É melhor não continuarmos a falar dessa noite.

Na manhã seguinte, preguiçosos, a vontade de mexer não era relevante e decidimos fazer algo bastante inédito na vida que agora temos: ligar a televisão. Coisas indianas. Críquete. Notícias. Tom & Jerry (material de grande qualidade) e, por fim, um milagre aconteceu. O zapping presenteou-nos com: a rtp internacional! O jardim da celeste e o Ernesto a explicar que devemos agradecer quando nos dão presentes, eu a cantar o tema da série e a Maarit a insistir que isto do português é uma coisa que soa mesmo a russo. Depois de conseguir convencê-los de que aquilo era material de boa qualidade e não era russo e ficarmos portanto os três durante quase duas horas a ver rtp internacional (eu ia traduzindo ou eles iam inventado significados, devia ser de madrugada desse lado e eram desenhos animados, pouco importa), achamos que estava na altura de fazer algo de culturalmente significante e prosseguimos no aluguer de duas jeitosas motas. Os capacetes não existem, conduzir do lado esquerdo em estradas um pouco danificadas também não é nada de mais e de cartas de condução nem se fala. Insisti e juntamente com o Zabir (Bangladesh) que estava aborrecido por estar num grupo com moças que só queriam ir às compras fomos os quatro em direcção a Old Goa, um local pequenito que se revelou extremamente mais isolado do que era suposto, ou talvez isso tenha sido apenas por nos termos perdido algumas vezes e assim demorado duas horas a chegar. Isto é, correcção, nós nunca nos perdemos, e uma dica utíl para quem anda em andanças destas é que nunca se está realmente perdido, se admitirmos isso e depois encontrarmos o caminho é apenas isso que se passa enquanto que se dissermos apenas que podemos estar perdidos e depois encontrarmos o caminho podemos reclamar que nunca estivemos realmente perdidos, como aconteceu, aliás, estava-nos a apetecer ver um pouco mais dos arredores de Goa. Ia sinalizando aos meus co-anos a cada marca que via - palavra portuguesa, aquela casa tem mesmo ar de casa portuguesa, aquela palavra é portuguesa, aquele nome é português. Por fim chegamos a um sítio mais pequeno do que era prometido com uma placa colorida a ferrugem que dizia "cidade de Goa". Visitamos uma catedral e um museu e eu fui guia do que é conhecimento cultural a qualquer pessoa com o quarto ano (e um bocadinho mais também). Aqui jaz e o resto está em latim e não se lê metade, olhem o meu amigo camões, e pelos vistos o salazar também tem direito a ser representado neste lugar, ia conduzindo as pessoas com quem estava pelas aulas de história de há muitos anos atrás e por uma sensação de estar num sítio extremamente familiar.

Os dois dias que se seguiram foram marcados pelo verbo vaguear, o primeiro por Vagator, praia vizinha onde a comer caril de peixe (parecido ao da Maria Palmira, especialidade da culinária Indo-Portuguesa!) assístimos em directo a um documentário do discovery channel sobre a reprodução das vacas em directo. (não estou a falar de televisões, perceberam?).
No ultimo dia vagueamos por já não termos as nossas motas e tão pouco quarto onde parar, até a chuva cair forte e andarmos de estabelecimento em estabelecimento até chegar a hora do nosso autocarro. Desta vez fomos num autocarro especial com camas em vez de bancos, uma coisa supostamente magnífica mas não tão confortável assim quando a estrada está, vá, quase a cair do próprio chão. Mas depois de se adormecer o tempo passa a deslizar. Até aquele momento em que abrimos os olhos e vemos que o sol já vai alto. Bom, devemos mesmo estar a chegar a Pune, fantástico. Youngho vai perguntar ao motorista e volta com uma cara estranha. Pessoal, temos um problema. Passamos Pune há duas horas e estamos a ir para Mumbai. Dianne e o seu espírito cor-de-laranja da Florida não parava de rir - a sério, isto é mesmo engraçado. Nesse ponto o melhor a fazer era dormir mais um bocado, que remédio. Um entrar e sair de diferentes de transportes já na grande cidade e finalmente um comboio onde nos sentamos entre compartimentos até uns indianos simpáticos nos oferecerem um espaço para ficarmos e assim fomos à boleia de comboio, conseguindo não chegar ao colégio fora de horas.